domingo, 11 de outubro de 2009

Ângulos



Ângulos. Há um lado certo para se ver e contar uma história? Procurar ver o maior número de lados? Guardar um espaço suficiente para ter-se um mínimo de isenção com o que se vai contar? Envolver-se mais ou menos com o personagem para tirá-lo de um não lugar e contar a sua história? Ângulos. Ela conta da felicidade das crianças em meio a regatos de águas límpidas e musgos aveludados, do âmbar do báltico que o mar atirava à praia entre conchas e caramujos... Ou “Ela conta de alguém que saiu com uma mão atrás e outra na frente de uma Europa em transe para tentar a sorte num país tropical exótico, onde um cacho inteiro de bananas representa o maná infindável de oportunidades que brota da nova terra”. Ângulos. Europeus de pouca ou nenhuma posse para ocuparem o lugar de escravos negros recém libertos que, em vez de trabalharem a terra e serem devidamente remunerados por seu trabalho, seriam e foram jogados a própria sorte, porque não se queria um Brasil de maioria negra. Ângulos. Já que temos de pagar, podemos escolher. Escolhemos, portanto, a raia miúda européia em detrimento da raia miúda africana. Que a negrada seja condenada a viver no alto dos morros comendo feijoada e fazendo samba. Ângulos. Minha mãe era dentista, conversava em alemão com os médicos e em latim com as freiras. Quase uma Ana Terra que, com uma tesoura, operava milagres entre as gentes de uma outra Bidinsula. Ângulos e pontos cegos. A judia que se casa com um médico. A mãe que entende que sua filha nunca irá passar necessidade. O pai que morre. A viagem a New York para conquistar a confiança dos fornecedores. A tragédia que ronda. O marido médico que não era tão chegado em medicina e que, em 1948, adapta a história de Peter Pan para apresentar em um aniversário de criança. Agora a família Gouveia sobrevivendo no teatro itinerante. Em vez de uma tragédia, uma breve comédia, ou melhor, teatro para crianças. Felizmente.


por José Carlos Silva, irmão da Ivelni.

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